Em tempos modernos, principalmente nas grandes cidades, é o trabalho que dita o ritmo de vida e as relações familiares. Depois de um dia cansativo de trabalho, o que sobra de tempo e de disposição para os pais dedicarem aos seus filhos, geralmente, é muito pouco. Mesmo assim, a atenção ainda é dividida com um adversário de peso: a tecnologia que atrai crianças e adultos. O celular, a internet, as redes sociais são presenças cada vez mais frequentes na vida de famílias cheias de ausências.
Educar dá trabalho! Criança dá trabalho!
E “educar é uma missão intransferível de quem, biologicamente ou por adoção, criou um vínculo de maternidade e paternidade”. É o que afirma, em entrevista à coluna Mulher 7 X 7 da Revista Época, o sociólogo e jornalista Sergio Sinay, autor do livro “Sociedade dos Filhos Órfãos”, em que critica a terceirização da educação dos filhos para babás, escolas e novas tecnologias. Segundo o escritor, “para dedicar tempo aos filhos, é preciso deixar outras coisas de lado”. Para o autor, cabe aos pais ainda a importante missão de dizer não e estabelecer limites. “Criar e educar é também frustrar, ensinar que nem tudo é possível. Só assim se ensina a escolher. E só quem escolhe pode ser livre”, afirma Sinay.
Presentes no lugar da presença
Se por um lado a presença dos pais na vida dos filhos é condicionada pelo tempo dedicado ao trabalho ou mesmo a outras distrações inerentes ao mundo moderno, os presentes assumem um falso papel de suprir essa carência. Vemos cada vez mais crianças com muitos brinquedos, cercadas de tecnologia (tablets, games, smartphones…) e que brincam muito pouco.
O medo da violência e a falta de espaços públicos seguros são alguns dos fatores que contribuem para o encarceramento da infância dentro de casas ou condomínios, o que diminui a interação com outras crianças, as descobertas e até a possibilidade de resolver problemas e enfrentar riscos. É o que aponta o artigo da especialista em Educação, Adriana Friedmann, “O papel do brincar na cultura contemporânea”. No texto, disponível no site do projeto Território do Brincar, a autora identifica ainda um fenômeno que chama de “institucionalização da criança”. É quando o apelo do brinquedo industrializado aliado à falta de espaço e segurança nas grandes cidades “transforma o brincar em uma atividade mais solitária e que acontece em função do apelo ao consumo de brinquedos”.
Crianças que adoecem
Ausência dos pais, ausência de espaço para brincar, ausência de regras, ausência de limites, ausência de afeto. Diante de tantas ausências, é natural que as crianças adoeçam. Mas não do corpo e sim da alma. Quando isso acontece, as consequências normalmente são apontadas pela escola: mau comportamento, problemas de relacionamento, agressividade, hiperatividade, dificuldades de aprendizagem.
Alarmados, os pais logo procuram ajuda médica em busca de um diagnóstico e de uma solução para o problema. A medicação então surge como a fórmula quase mágica capaz de aliviar não só os sintomas da criança, mas também a culpa dos pais.
Para o pediatra e psicanalista Paulo Schiller, o que acontece é que muitas escolas procuram se livrar de crianças difíceis pelo caminho mais fácil, que é o da medicalização. “Muitas vezes a criança é trazida ao psicanalista juntamente com o pedido de que se repare uma parte de uma engrenagem que deveria estar funcionando bem. Como se ela fosse portadora de um defeito pontual a ser consertado”, conta.
Autor do livro “A Vertigem da Imortalidade: Segredos, Doenças”- Companhia das Letras -, Schiller acredita que o diagnóstico funciona como um rótulo do qual a criança passa a ser portadora e que retira a responsabilidade dos pais pela origem dos sintomas. “O déficit de atenção é uma entidade fictícia que encobre sintomas causados pelo ambiente familiar”, afirma.
Segundo o médico, que durante 12 anos coordenou o Serviço de Psicologia e Psicanálise do Departamento de Oncologia Pediátrica da UNIFES, só nos Estados Unidos cerca de seis milhões de crianças e adolescentes (8% da população de 6 a 17 anos) com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) tomam medicamentos. Com diagnósticos cada vez mais precoces e a medicalização do problema, “teremos cada vez mais uma geração que não se responsabiliza pelos próprio mal-estar”, prevê Paulo Schiller.
Professor do Curso de Introdução à Psicanálise para Pediatras, do Instituto Sedes Sapientiae, Schiller explica que “em psicanálise o trabalho inclui e envolve os pais e a medicação nunca deveria chegar a ser considerada”.
No Brasil, estima-se que 5% das crianças tenham o transtorno. É o que afirma a psicanalista Rachel Botelho. “Nas palestras que faço em escolas de São Paulo sobre o chamado TDAH na ótica da psicanálise, já encontrei classes em que 40% das crianças haviam sido diagnosticadas e a maior parte delas tomava medicação para ir à aula”, conta.
Segundo Botelho, apesar de ser o transtorno psiquiátrico mais diagnosticado na infância, as pesquisas falharam em apontar suas causas. “Não há exames laboratoriais ou de imagem que demonstrem a sua existência. O diagnóstico é clínico e sua existência vem sendo posta em dúvida nos últimos anos até mesmo por psiquiatras. Nem na psiquiatria a existência do TDAH é consenso”, alerta.
Apesar disso, a psicanalista afirma que quando há um diagnóstico e sua causa é atribuída a um mau funcionamento do cérebro (um déficit de neurotransmissores), a medicação aparece como a única solução. As consequências, segundo ela, são graves: a desresponsabilização dos pais, da escola, dos professores e da própria criança a respeito do mal-estar que ela sofre. “Não há espaço para questionamentos sobre a causa do sofrimento, que a criança extravasa no corpo porque não consegue pôr em palavras”, explica.
“O bem-estar e a felicidade, uma vida com o maior número possível de bons momentos, certamente desejável, não são produtos a serem adquiridos como bens de consumo ou resultantes de soluções simplistas, quase ingênuas – como se não tivessem custos que não o financeiro – pelo seu imediatismo”
Paulo Schiller – pediatra e psicanalista
Ao contrário do que promete a medicação, portanto, parece não haver mesmo uma solução mágica ou imediata para os problemas dos filhos, como gostariam muitos pais e mestres. Ela exige, sim, muito trabalho e dedicação, principalmente da família.
Tempo de mudanças
Trabalhar e ainda encontrar tempo para estar com os filhos, conseguir aproveitar bem esse tempo, saber dizer não, criar regras e exigir o seu cumprimento, criticar, castigar, elogiar… Como fazer tudo isso e na medica certa? Em nosso projeto Criança é Vida Afeto e Proteção, uma equipe de especialistas em psicologia e educação, elaborou uma série de dicas e orientações que podem ajudar na promoção de uma convivência com mais qualidade entre pais e filhos. Leia no quadro a seguir.