Inadimplência e endividamento podem ser considerados os principais “sintomas” de uma saúde financeira que não vai bem. É o que acontece no Brasil, onde, até o 1º semestre de 2018, mais da metade das famílias (58,9%) tinham, pelo menos, uma dívida e a maior parte delas era no cartão de crédito (76,3%), de acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor.
Se fosse possível realizar um exame detalhado, como um hemograma completo, capaz de detectar os principais problemas na saúde financeira dos brasileiros, os resultados seriam, no mínimo, preocupantes.
Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) fez esse mapeamento. Ela mostrou que seis em cada dez brasileiros inadimplentes (61%) têm pouco conhecimento sobre a própria renda. Além disso, 45% admitem saber pouco ou quase nada sobre o valor das contas básicas que precisam pagar no fim do mês.
Pedagoga e especialista em Gestão de Projetos Sociais com MBA em Gestão de Sustentabilidade e consultora em Educação Financeira, Aline Ditta aponta, como a principal causa do endividamento da população, a facilidade de acesso ao crédito e ao consumo aliada à ausência de suporte, orientação e conscientização financeira. “Se por um lado, [o consumo] melhorou muito, porque as pessoas têm acesso ao crédito e aos produtos bancários, elas não têm a educação financeira, o que leva a sérias dificuldades”, explica.
A demanda por este projeto chegou até nós, inicialmente, através do pai de uma criança atendida pelo Centro de Promoção Social Bororé, que nos falou que a falta de dinheiro e de conhecimento para usá-lo de forma adequada afeta diretamente a saúde de uma pessoa. Trabalhar educação financeira, portanto, tem tudo a ver com a educação para a saúde. Já em 2016, preocupados com as dificuldades enfrentadas pelas famílias das crianças atendidas nas instituições parceiras do Instituto Criança é Vida, educadores também trouxeram a demanda por um projeto sobre Saúde Financeira. No mesmo ano, o ciclo para crianças de 7 a 9 anos começou a ser escrito pela consultora e também formadora do Instituto, Aline Ditta. Em 2017, foi aplicado como piloto em São Paulo e, depois de alguns ajustes, passou a ser replicado em larga escala em 2018. Atualmente, o projeto acontece em 92 instituições, das cidades de Campinas, Mogi das Cruzes, Rio de Janeiro e zona sul de São Paulo, contemplando cerca de 4.700 crianças.
Destinado a duas faixas etárias (7 a 9 anos e 10 a 12 anos), o projeto trabalha conceitos iniciais e noções básicas de como conviver com o dinheiro de forma a praticarem o consumo consciente e sustentável e fazer o melhor uso dos recursos financeiro disponíveis.
De maneira lúdica e atraente para o público infantil, o projeto cria oportunidades de pensar sobre o uso do dinheiro, sobre a importância de poupar e planejar. Ao adquirir novos conhecimentos sobre educação financeira, as crianças passam a influenciar as decisões de suas famílias e se tornam agentes de mudança da realidade em que vivem.
Para a especialista e autora do projeto Saúde Financeira, todos os projetos do Instituto Criança é Vida acabam impactando a família porque as crianças assimilam as experiências com tamanha intensidade que as levam para casa. “As crianças podem não mudar o comportamento dos pais de imediato, mas eles vão pensar e refletir. O que já é um bom caminho”, opina.
Praticando educação
Os primeiros resultados do projeto já começam a surgir. Educadores mudaram sua forma de lidar com dinheiro, cancelaram cartões de crédito, iniciaram poupanças e investimentos. Crianças estão ajudando a família a pensar o que fazer com o dinheiro, dando inclusive conselhos para os parentes mais endividados. “Os educadores estão se surpreendendo com eles mesmos e descobrindo que precisam ter pensamentos mais conscientes em relação ao dinheiro nas suas próprias vidas”, conta Aline Ditta.
“O dinheiro tem que te ajudar. Ele não pode tirar o seu sono”
Aline Ditta
Confira no vídeo, como educadores e crianças estão aprendendo conceitos importantes sobre saúde financeira.
Estimular a mudança de hábitos em relação à saúde financeira talvez seja o maior desafio e o maior mérito do projeto. Segundo a pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), entre os que se endividaram por descontrole financeiro ou compras impulsivas, 58% não tentaram mudar a atitude para reverter a situação. Já em relação às medidas tomadas para manter as finanças em dia, 81% não fizeram nada.
Outra tendência apontada pela pesquisa é a ligação entre o descontrole dos gastos e os aspectos emocionais. Para se sentirem melhor (36%) ou mais bonitas (27%) as pessoas vão às compras, mesmo que para isso deixem de pagar uma conta (37%). A pesquisa constatou ainda que o fator que mais contribuiu para o desequilíbrio nas finanças (21% dos casos) foi a ansiedade, segundo os entrevistados.
Divulgada em agosto deste ano, a pesquisa ouviu 609 consumidores com contas em atraso há mais de 90 dias em todas as capitais do país, de ambos os gêneros, acima de 18 anos e de todas as classes sociais. A margem de confiança da pesquisa é de 95%.
A psicóloga e psicanalista Elba Almeida explica que a compulsão por compra, além de um problema individual, é também um sintoma social que reflete a sociedade de consumo exagerado na qual estamos inseridos. “A mensagem que a sociedade passa é a de que o ser humano vale muito pelo seu poder de compra. E a mídia mostra isso o tempo todo, inclusive nos canais infantis”, destaca.
Para identificar se o consumo está se transformando em doença, a psicóloga diz que é preciso observar alguns aspectos. Segundo ela, no ato da compra, seja por necessidade, realização de um sonho ou satisfação de um desejo, existe um prazer genuíno. Já na compulsão, a compra não tem um objetivo específico e vem por um impulso, seguida de uma sensação de desprazer e de culpa. “No momento da compra a pessoa se sente preenchida por algo, mas logo o vazio aparece novamente, causando um grande sofrimento emocional e psíquico”, conta.
Quando a pessoa percebe que está perdendo o controle sobre as compras e que é grande o sofrimento que isso está causando, ela deve buscar ajuda. “Em geral, a compulsão está associada a quadros de depressão e ansiedade e o tratamento, na maioria das vezes, tem que ser psiquiátrico e de psicoterapia”, esclarece Elba, que também é formadora do Instituto Criança é Vida.
A consultora Aline Ditta concorda que não há nada de errado em realizar sonhos ou satisfazer desejos e defende que isso seja feito de forma pensada. “Eu posso sonhar com bens de consumo, ainda que sejam supérfluos, mas preciso ter a certeza de não estar comprometendo aquilo que eu realmente preciso. É nisso que as pessoas muitas vezes se atrapalham”, afirma.
Aos interessados em promover mudanças nas próprias vidas, a especialista dá uma dica: o vídeo “6 truques para guardar mais dinheiro”. Bom proveito!