Entrevista
Construindo uma nova realidade

No ano em que comemoramos os 20 anos da criação do Criança é Vida, resolvemos contar um pouco da nossa trajetória ouvindo algumas das pessoas que fazem parte da nossa história.

Para começar a série de entrevistas, ouvimos três dos profissionais que, assim como nós, também escolheram as crianças e os adolescentes como foco principal do seu trabalho. Eles são os pediatras: Dr. Francisco Frederico Neto, Dr. Celso Sustovich e Dr. Roberto Bittar. (Sugiro criar links de mesma página em cada nome. Não requer custo extra.)

Em seus depoimentos, eles contam como o Instituto Criança é Vida entrou na vida de cada um deles e tratam de temas importantes para a saúde infantil como a prevenção de doenças, a obesidade, o acesso à informação e o papel de que cada um de nós na promoção de uma vida com mais saúde para crianças e adolescentes.

Como começou o seu envolvimento com o Instituto Criança é Vida?

Dr. Francisco Frederico Neto: Quando recebi o convite para conhecer o projeto, eu já trabalhava com pediatria ligada à educação infantil em creches e escolas. Participei da criação dos 12 primeiros módulos do Criança é Vida, que incluíam as apostilas, os cartazes, os folhetos de divulgação para os pais e que acabaram se tornando um modelo de forma de atuar do Instituto.

Dr. Celso Sustovich: Quando comecei a trabalhar na indústria farmacêutica, eu dava aulas para representantes. Sempre tive uma boa didática, o que fazia com que os leigos entendessem bem a parte médica. Durante dez anos, também participei de um projeto que promovia colônias de férias para crianças e adolescentes diabéticos. O conceito de saúde e prevenção que embasava a proposta do Criança é Vida tinha tudo a ver com a pediatria e isso motivou muito a minha participação. Afinal, a melhor forma de aprimorarmos a saúde humana é através do ensino das informações corretas sobre saúde.

Dr. Roberto Bittar: Há cerca de quatro anos fui convidado a atuar junto à diretoria. Ao longo desses anos, fui me integrando ao Instituto e às suas atividades e passei a fazer parte desse lindo trabalho que – agora eu também me incluo –  nós realizamos.

O que mais o motiva a atuar junto ao Instituto Criança é Vida atualmente?

Dr. Francisco Frederico Neto: Eu tenho muito prazer em aplicar as formações. Isso tem renovado minhas energias. Gosto de ensinar, principalmente para o público leigo, para pais, para educadores. Gosto do contato direto, de ensinar os primeiros socorros, prevenção de acidentes, problemas de saúde mais comuns…  Além disso, tenho enorme prazer em revisar conteúdos prestando consultoria ao Instituto.

Dr. Celso Sustovich: O projeto está muito ligado aos meus princípios e valores de vida, que têm como pilar a saúde. Além disso, é muito bem cuidado. Ele me dá a chance de contribuir para que crianças e adolescentes, que são muito abertos e estão na fase de receber informação, possam decidir sobre alguns caminhos. Isso me motiva a continuar no projeto. Estou convicto de que ele é um vetor de modificação do comportamento do ser humano e que a educação e os princípios básicos são modificadores de destino. As modas normalmente não transformarão os destinos, mas os fundamentos sim.

Dr. Roberto Bittar: Venho contribuindo ao longo do tempo em coisas específicas dentro da minha formação pediátrica e quero poder colaborar cada vez mais de uma maneira mais objetiva dentro dos projetos. O Instituto tem uma equipe maravilhosa de psicólogos e assessores médicos. São vários profissionais que dão assessoria, um time muito bem preparado e muito bem formado, do qual eu pretendo cada vez mais fazer parte.

São os princípios básicos de higiene que, se praticados no dia a dia, podem minimizar o desenvolvimento das doenças na infância?

Dr. Francisco Frederico Neto: Os cuidados básicos, como lavar as mãos com frequência e o banho diário, obviamente, são eficientes. A higiene dos alimentos e a limpeza da casa também contribuem muito.  Além disso, quando houver, no Brasil, um projeto de saneamento de verdade, que se universalize cada vez mais, também vamos dar um salto gigantesco em matéria de saúde.

Dr. Celso Sustovich: Sim, são princípios que, embora considerados básicos, como cortar as unhas ou escovar bem os dentes, acabam não sendo valorizados ou até mesmo aplicados. E hoje estou certo de que esta “desvalorização” está diretamente ligada à falta de educação já que os impactos positivos das medidas básicas de higiene foram amplamente demonstrados em trabalhos científicos. Por isso, quando surgem as epidemias, principalmente as virais, as orientações dadas, apesar de serem as mais básicas, dão um resultado muito grande. O problema é que as pessoas acham que esses cuidados já estão subentendidos pela população. São conhecimentos aos quais todas as classes têm acesso, mas que, mesmo assim, ainda são difíceis de serem disseminados, aplicados e, portanto, mantidos como princípios de saúde e de educação.

Dr. Roberto Bittar: Desde a infância, e em todos os níveis sociais, é necessário formar a consciência nos indivíduos em relação aos cuidados corporais e aos hábitos de higiene, mostrando sua relação com a prevenção de doenças. São coisas que, às vezes, até mesmo os adultos não percebem, como o lavar as mãos ao sair do toalete ou adotar os cuidados básicos com a higiene bucal. Hábitos que, apesar de básicos, não estão incorporados à cultura e não só nas classes sociais menos privilegiadas.

As pessoas não tomam cuidados básicos por falta de informação?

Dr. Francisco Frederico Neto: Seja em qual for o nível social, todos carecem de informação e de entender melhor as doenças infantis. É preciso que se tenha consciência de como determinada doença se comporta, como evolui, para que alguns cuidados básicos sejam adotados antes que um tratamento intensivo seja necessário. Isso acontece com uma gripe, com uma diarreia, que são condições que exigem cuidados simples, e que são apresentados nas formações do Instituto.

Dr. Celso Sustovich: Sim, a informação e a educação são fundamentais, pois ajudam pessoas a superarem os problemas de forma positiva e construtiva, transformando-se como ser humano. Nas comunidades e instituições onde o Instituto Criança é Vida atua é possível perceber que, no dia a dia das pessoas, as práticas acabam se aprimorando, não só nas crianças, mas nas escolas e nos ambientes que acabam ficando um pouco mais limpos e “saudáveis”. Eu tenho convicção de que é por aí que a gente deve seguir o nosso caminho aqui no Brasil.

Dr. Roberto Bittar: É decorrente de um fator cultural muito forte, além do fator econômico. Quantas famílias hoje em dia têm condição de trocar uma escova de dentes em determinado intervalo de tempo? A falta de alguns cuidados passa também por hábitos ligados à cultura, à origem e que atravessam o tempo. Quando chegam à adolescência, que é um período de rebeldia, os jovens acabam deixando de lado alguns cuidados. Por isso, investir em criança é fundamental. É lá na sementinha, na formação da criança, que as mudanças acontecem.

Qual a sua análise sobre a obesidade infantil no Brasil?

Dr. Francisco Frederico Neto: No Brasil, a faixa de desnutrição foi substituída por uma de obesidade. A desnutrição é cada vez mais rara. Mesmo as crianças que comem menos do que os pais gostariam, costuma crescer e se desenvolver bem. Já a criança obesa enfrenta mais riscos.  As pessoas, por terem mais acesso ao consumo, começaram a comer mais alimentos ricos em gorduras e carboidratos (salgadinhos, biscoitos, frituras, maionese, refrigerantes…) Paralelo a isso, vieram os jogos eletrônicos e uma vida mais sedentária. O combate à obesidade, então, deve acontecer em duas frentes: uma é fazer exercício com regularidade, a outra é ter uma dieta mais equilibrada. Mas sem radicalismos. Tudo o que é exagero é ruim. Até o exagero de comida saudável vira uma ditadura. Uma alimentação equilibrada não deve ser confundida com uma alimentação chata.

Dr. Celso Sustovich: O crescimento da obesidade no Brasil começou quando as condições financeiras das pessoas, que estavam em níveis sociais mais baixos, melhoraram e elas entraram em outra faixa de consumo, o que gerou um efeito psicológico importante para elas. Comer mais (e não necessariamente melhor) significava ter um padrão melhor do que não comer. A consequência foi o estímulo da sociedade às crianças comerem mais. Em paralelo, as ansiedades geradas pelos desafios do mundo competitivo atual tornaram a comida uma “fonte de alívio”, contribuindo também para os excessos. Por isso, hoje, no Brasil, nós temos uma epidemia que acomete, não só as classes mais baixas, como as classes altas, os adultos, as crianças e os adolescentes. Mais de 50% da população atualmente já tem, no mínimo, sobrepeso.

Temos um sistema que estimula excessivamente o consumo de alimentos. A consequência são crianças que não conseguem ter noção de limite.  Limitar a exposição infantil a determinados produtos, em horários ou veículos de comunicação, requer iniciativas que ainda estão começando a caminhar.  Os conceitos e as diferenças entre “comer mais” e “comer bem” ainda precisam ser melhor explicados. Daí importância da educação para estabelecer limites e controles.

Acredito que quando uma criança é envolvida no processo de educação e ela aprende certas coisas fora do ambiente familiar, de forma simples e didática, temos, sim, uma possibilidade de mudança de hábitos. Essa é uma batalha que precisa ser contínua. Por isso, não desanimo de orientar ou conversar sobre educação e saúde.

Dr. Roberto Bittar: O acesso à cesta básica e à alimentação em geral praticamente acabou com o problema da desnutrição no Brasil. Já o problema da obesidade é bem complexo porque envolve vários fatores. A vida moderna tem a sua parcela de culpa nisso. Atualmente as crianças consomem mais refrigerantes, doces, alimentos ricos em sódio, muita gordura desnecessária e, paralelamente, fazem menos atividades físicas. As brincadeiras geralmente envolvem games, televisão e computador. Pelo medo da violência, a rua não é mais um espaço para a criança brincar. Existem ainda fatores emocionais importantes envolvidos como ansiedade e estresse. Junto com a comida, a criança tenta engolir também os seus problemas.

Além da importância de orientar a criança e a família a se alimentarem adequadamente e serem ativas fisicamente, também é preciso combater a mídia e a indústria alimentícia contra seus interesses econômicos para que fique “martelando” na cabeça das crianças mensagens para o consumo de alimentos altamente calóricos, como salgadinhos e refrigerantes.

Como os profissionais de saúde podem colaborar para a promoção de uma vida com hábitos mais saudáveis?

Dr. Francisco Frederico Neto: Para mim, educar é fundamental. Sempre que possível, devemos entregar material explicativo sobre uma doença informando como ela evolui. Ou seja, os pais saem da consulta com informação e com material para consolidar sua compreensão e, da próxima vez que aquele quadro acontecer, já estarão sabendo um pouco mais do que se trata. A conscientização e a educação em saúde infantil são básicas, seja qual for o nível sócio econômico dos pais.

Dr. Celso Sustovich: O engajamento é fundamental. Dar o exemplo é outro princípio importante. Ainda há uma dificuldade de um verdadeiro e completo engajamento da classe médica sobre as diferenças do ambiente do consultório e fora dele. Tanto os médicos, quanto enfermeiros, nutricionistas e psicólogos precisam viver e refletir intensamente o dia a dia do paciente (o conhecido “colocar-se na posição do outro”). Isso é frequentemente difícil de ser feito na clínica e requer um engajamento através de algum projeto social, seja de atendimento, seja de convivência. Esta prática é fundamental para que os profissionais de saúde formulem orientações que possam ser aderidas no cotidiano, tanto para um plano de dieta, quanto para a manutenção da disciplina de fazer coisas básicas, como lavar as mãos ou escovar os dentes. Além disso, é preciso ter os pais engajados, preparados e convencidos das orientações para poderem dar ressonância às crianças. Esse é o grande desafio.

Dr. Roberto Bittar: Depender somente das ações do Estado para uma melhora na qualidade de vida da nossa população é utopia. Num país como o Brasil, com tanta desigualdade social e que está imerso num mar de corrupção e desvio de dinheiro público, o terceiro setor tem papel fundamental.  Educação e saúde são o foco principal dos projetos do Instituto Criança é Vida e os resultados são muito positivos nas comunidades onde ele está presente. Projetos como este, se multiplicados, podem ter um grande impacto nas vidas das pessoas e na comunidade.

Dr. Francisco Frederico Neto

Pediatra Formado pela USP de Ribeirão Preto e Mestre Pediatria pela Faculdade de Medicina da USP de São Paulo, atualmente coordena o Ambulatório Filantrópico de Distúrbios de Aprendizagem do Hospital Sírio Libanês, ministra cursos para gestantes, além de atuar em consultório particular e aplicar as formações para adultos oferecidos pelo Instituto Criança é Vida. Atua como assessor científico do Instituto Criança é Vida desde 1996. Autor do livro “Pediatria ao Alcance dos Pais – Compreender a Doença é o Melhor Remédio”. Ed. Imago.

Dr. Celso Sustovich

Médico formado pela Santa Casa de São Paulo, fez residência em pediatria no Instituto da Criança da Faculdade de Medicina da USP e possui especialização em Endocrinopediatria. Conta com mais de dez anos de experiência em pediatria clínica, geral (consultório, hospitais e universidade) e endocrinologia pediátrica. Foi Diretor Médico e é, hoje, membro do Conselho Consultivo do Instituto Criança é Vida.

Dr. Roberto Bittar

Pediatra formado em 1981 pela Faculdade de Medicina da USP possui residência médica no Instituto da Criança, ligado ao Hospital das Clínicas, especialização em Neonatologia e Terapia Intensiva Pediátrica e é Diretor Médico do Instituto Criança é Vida.