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Informar é proteger

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Quando o assunto é violência no Brasil, cada um de nós já viu, ouviu ou enfrentou algum tipo de situação capaz de causar medo, preocupação e até deixar sequelas físicas ou emocionais.

Crimes estampados diariamente nos noticiários policiais trazem para dentro de casa a apreensão em relação à insegurança no país.

Mas existe outro tipo de violência, que pode estar muito próxima e acontecer de maneira velada e silenciosa, e é muitas vezes negligenciada: a violência sexual.

É o que mostra o Atlas da Violência 2018. Produzido pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o documento foi lançado em junho e aponta uma realidade extremamente alarmante em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes.

A pesquisa identificou que “68% dos registros de estupro, no sistema de saúde, se referem a menores”.

Fonte: Atlas da Violência 2018

Morando com o inimigo

O levantamento também aponta que “um terço dos agressores das crianças (até 13 anos) são amigos e conhecidos da vítima e outros 30% são familiares mais próximos como pais, mães, padrastos e irmãos”.

A negligência fica evidente quando os números revelam que 54,9% dos casos referem-se ações que já vinham acontecendo anteriormente e 78,5% dos casos ocorreram na própria residência”.

Imagem: Instituto Criança é Vida

A proximidade do agressor e a negligência familiar pode explicar ainda outro dado preocupante: a estimativa de que apenas 10% de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são notificados.

O que os números permitem interpretar é que, por trás de um crime, existe um perigoso e nocivo pacto de silêncio envolvendo vítimas, agressores e familiares. Como, então, ultrapassar essa barreira, impedir o abuso ou denunciá-lo? O primeiro passo está na educação.

Para a advogada e Promotora e Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo de maio de 1983 a outubro de 2012, Luiza Eluf, a educação sexual, a partir dos seis ou sete anos de idade, é muito importante. “É preciso informar e educar para uma vida saudável. Acima de tudo, é importante criar um ambiente no qual a sexualidade seja algo natural, necessário e prazeroso, sem tabus ou preconceitos”, afirma.

Desde 2007, a educação sexual é tema de projetos desenvolvidos pelo Instituto Criança é Vida, com base em objetivos muito claros:

  • Levar cada criança e adolescente a conhecer seu corpo, valorizá-lo e cuidar de sua saúde.
  • Evitar a gravidez não planejada, mostrando caminhos para que adolescentes procurem orientação e façam uso de métodos contraceptivos.
  • Unificar conhecimento entre instituições, famílias e crianças.
  • Ensinar às crianças e aos adolescentes a se protegerem de relacionamentos sexuais coercitivos e exploradores.
  • Contribuir para que as crianças e adolescentes possam desenvolver conhecimentos que as conduzam futuramente a exercer sua sexualidade com prazer e responsabilidade.

No ciclo “Tempo de descobrir”, educadores são formados para orientar crianças de 7 a 9 anos a conhecer, valorizar e cuidar bem do próprio corpo e, principalmente, a identificar quando o comportamento de outra pessoa as incomoda e assim conseguir se defender.

No módulo “Eu sei pedir ajuda” educadores também são orientados a identificarem nas crianças sinais de abuso sexual que podem ser físicos, comportamentais ou aparecerem na relação com familiares, amigos e na escola.

Ter atitude agressiva, mau desempenho escolar, raiva, fuga da escola, vergonha excessiva, perturbações no sono, medo de escuro, poucas relações com colegas ou companheiros, mudanças no apetite são alguns deles. A apostila faz a importante ressalva de que nenhum sinal isolado é específico de violência sexual e que um conjunto ainda maior de sinais indicativos deve ser observado.

Imagem: Instituto Criança é Vida

Nos outros dois ciclos do projeto Educação Sexual, “Sexo, amor e responsabilidade” e “Questões de adolescência”, educadores recebem formação para trabalhar com crianças de 10 a 12 anos e adolescentes de 13 a 15 anos, respectivamente.

Tão importante quanto preparar educadores e crianças para que saibam identificar o abuso e, assim, pedir ajuda, é garantir o adequado acolhimento e a proteção das vítimas. Caso contrário, o pacto de silêncio e medo que envolve as famílias diante da violência tende a não acabar.

A advogada Luiza Eluf, cuja trajetória é marcada pela luta pelos direitos da mulher, lembra que, na maioria dos casos, a pessoa que cuida e protege as crianças é a mãe. “Muitas vezes, as mulheres têm medo de reagir denunciando o agressor, porque, em geral, foram ensinadas a temer o homem e a sociedade. As mulheres se sentem fracas, sem apoio para enfrentar uma situação muito delicada”, diz.

Para a Dra. Eluf, o caminho para quebrar o pacto de silêncio passa pela atuação adequada de várias esferas do poder público. “Cabe aos governos, aos professores e educadores em geral, diretores de escolas bem como às polícias e às secretarias da saúde prover atendimento adequado e necessário para que as denúncias sejam formalizadas e os agressores sejam afastados das suas vítimas reais e potenciais”, afirma.

Se educar é o primeiro passo para tentar coibir o abuso sexual de crianças e adolescentes, o segundo passo para interromper esse tipo de prática é a denúncia. Mas estar diante de um relato de uma criança sobre o abuso sofrido, especialmente quando o abusador é um familiar, é uma situação bastante difícil para a criança, para os demais membros da família e para quem ouve.

Imagem: Instituto Criança é Vida

Por isso, foi criado o Disque 100. O Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes é um serviço que permite informar às autoridades qualquer suspeita séria de abuso sexual. A denúncia pode ser anônima.

Caso seja verificada a ocorrência de abuso sexual impostos pelos pais ou responsáveis, e consequentemente o desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum, ou a retirada da criança.

Do papel para a prática

Embora não faltem leis no Brasil capazes de coibir a violência sexual, ainda falta, na prática, a ampliação e a qualificação do serviço público de atendimento às vítimas.

Falta de pessoal, demora no atendimento, horários restritos de funcionamento são alguns dos problemas apontados pela Dra. Luiza Eluf, nas Delegacias da Mulher, órgãos encarregados de receber as ocorrências.

Além disso, “o poder judiciário conta com um corpo de peritos médicos e psicólogos muitas vezes não suficientemente gabaritado a atender pessoas vítimas de violência sexual, principalmente crianças”, afirma a Dra. Eluf.

Ademais, nem em todas as regiões do país, infelizmente, o sistema é eficiente e as autoridades competentes dão a devida importância ao assunto.

Para a advogada, a saída para que crimes assim não fiquem impunes está na aplicação das leis existentes, no enfrentamento ao machismo “dos poderes constituídos, que menosprezam e, por vezes, ridicularizam a versão da mãe da vítima” e na garantia de um corpo técnico capacitado para atender aos casos de abuso sexual de crianças de forma objetiva. “Então poderemos dizer que fazemos justiça no Brasil!”, conclui.