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Solidão digital

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Imagem: Instituto Criança é Vida
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Um casal chega ao restaurante com uma criança de aproximadamente dois anos de idade. A cliente da mesa ao lado logo supõe que a sua proposta de um jantar tranquilo estaria em risco. Após acomodar a filha em um cadeirão, a mãe se apressa em oferecer a ela um tablet. O jantar, então, transcorre tranquilamente sem que os pais sejam incomodados. O incômodo, porém, vem exatamente da mesa ao lado. A mesma cliente, que antes esperava pela agitação característica de uma criança daquela idade, agora se surpreende com o fato de que, até o fim do jantar, ainda não conseguia sequer saber se a menina sabia falar.

Em um trem urbano de São Paulo, a maioria dos passageiros viaja usando fones de ouvidos conectados a seus respectivos celulares. Assim, escolhem aquilo que querem ou não ouvir. Durante um trajeto de aproximadamente 15 minutos, uma passageira opta por escutar apenas o som ambiente e é atraída por uma voz infantil. Sentada no colo da mãe, uma menina, também de aproximadamente dois anos de idade, se encanta com a paisagem pela janela e, em voz alta, faz comentários animados sobre tudo aquilo que vê. O poluído rio Pinheiros chama a sua atenção e ela julga ser a praia. Entusiasmada, a criança faz planos de levar a “vovó” e a “titia” para jogarem bola com ela na “plaia”. Sem tirar os olhos do celular, a mãe se limita a responder aos comentários da filha com desinteressadas expressões como “ahan” e “é”, enquanto navega na rede social. Chegando na sua estação, a passageira que observava a cena desce do trem encantada com a vivacidade daquela menina e triste diante da solidão da criança que segue viagem.

Imagem: Creative Commons CC0
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Seja no restaurante ou no transporte público, é possível observar a tecnologia tomando, muito precocemente, o espaço das experiências e das interações reais na vida das crianças. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2015, realizada pelo Centro de Tecnologia e Comunicação (Cetic-br), do Comitê Gestor da Internet no Brasil, 79% das crianças e adolescentes de 9 a 17 anos são usuários de Internet.

Nas classes A e B, o percentual de crianças e adolescentes conectados chega a 97%, seguida pela classe C com 84%. As classes C e D, embora menos favorecidas economicamente, já contabilizam metade das crianças e adolescentes usuárias de internet (51%). Dados como estes, embora representem um avanço em relação à democratização do acesso à informação, também geram preocupação entre pais e especialistas.

Para a psicóloga Carla Cavalheiro Moura, Pós-Graduada em Saúde Mental na Infância e Adolescência pela Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo, já é possível notar na clínica os efeitos da inserção precoce da tecnologia na vida das crianças. Problemas de memória, dificuldades de postura, dores nos dedos e articulações, além de noites de sono prejudicadas são algumas das implicações no desenvolvimento físico das crianças. “Outra questão importante é que quando a criança está inserida no mundo da internet ela deixa de brincar com o mundo concreto, o que tem uma consequência no seu desenvolvimento cognitivo geral”, afirma.

Imagem: Creative Commons CC0
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O impacto da falta de atividades e brincadeiras no desenvolvimento físico e cognitivo das crianças também é percebido no dia a dia do Centro de Assistência e Promoção Social (CAPS) Nosso Lar, em São Paulo, que atende crianças e adolescentes de 0 a 14 anos oriundos de famílias de baixa renda. “Tivemos uma criança que entrou na creche com três anos e não conseguia subir em um brinquedo porque os músculos da perna não tinham forças. Só ficava na frente da TV”, conta Vana Portioli, integrante da equipe de Captação de Recursos e Relações Institucionais do CAPS. Ela conta que nas creches existe um planejamento para ocupar as crianças e promover o seu desenvolvimento intelectual e físico de acordo com a idade, além da oferta de uma alimentação saudável e do período de descanso. A recuperação da criança aconteceu depois de três meses de atividades para fortalecer a musculatura.

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A substituição da brincadeira pela tecnologia é o que aponta também uma pesquisa realizada pela Unicamp com crianças de 8 a 12 anos: aquelas que passam muitas horas diante das telas dos eletrônicos não brincam no mundo real. Para Carla Moura, há 25 anos na área clínica, o que está acontecendo atualmente com as crianças é a troca do mundo real pelo mundo virtual, um fenômeno antes mais comum entre os adultos. “Hoje os eletrônicos como tablets e smartphones são ofertados para a criança para que ela se distraia. É a chamada chupeta digital. Os aparelhos eletrônicos não devem ser vistos como brinquedos e muito menos como algo que distraia a criança”, alerta.

Para além do mundo virtual, a psicóloga dá exemplos simples de como é possível distrair os filhos em ambientes públicos. Numa pizzaria, a dica é pedir um pedaço de massa e brincar de modelar com a criança enquanto aguarda ou mesmo quando já estão à mesa. Outra ideia é levar na bolsa giz de cera e papel para que ela desenhe. Mas ela também chama a atenção para o fato de que é natural que a criança, pelo seu próprio desenvolvimento cognitivo, não se atenha por muito tempo em um só brinquedo, em um só brincar. “Muitas vezes, o que os pais querem, equivocadamente, é que a criança fique quietinha vendo um filminho”, comenta.

A psicóloga explica ainda que quando a tecnologia substitui a brincadeira, causa prejuízos na socialização da criança. “Existem estudos que mostram que a criança acaba falando menos quando interage com o tablet, mas não com a fala. A falta da brincadeira concreta também causa atraso na linguagem”, alerta.

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Para a especialista, antes dos dois anos de idade, a criança deve ser estimulada de maneira a se desenvolver física e cognitivamente por meio do brincar e do brinquedo e não da tecnologia. É o que sugere também uma cartilha produzida pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), e disponível na internet. Segundo o documento, “estudos científicos comprovam que a tecnologia influencia comportamentos através do mundo digital, modificando hábitos desde a infância, que podem causar prejuízos e danos à saúde”.

Imagem: Creative Commons CC0
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O manual da SBP afirma ainda que “o uso precoce e de longa duração de jogos online, redes sociais ou diversos aplicativos com filmes e vídeos na Internet pode causar dificuldades de socialização e conexão com outras pessoas e dificuldades escolares” e que “a dependência ou o uso problemático e interativo das mídias causa problemas mentais”, entre outras consequências tão ou mais graves que estas. Além de apontar os riscos, o documento também orienta pais e responsáveis sobre as condutas mais adequadas para cada fase de desenvolvimento de crianças e adolescentes quanto ao uso de tecnologia.

Para os pais, Carla orienta que ofertem outros tipos de brinquedos e brincadeiras para as crianças, especialmente, aquelas que promovam a movimentação física, evitando, por exemplo, problemas como o sobrepeso e a obesidade. “Smartphone não é brinquedo, tablet não é brinquedo e nem é presente para ser dado em aniversário de criança”, conclui.

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Vana Portioli, do CAPS, também reforça a importância da mudança de postura dos pais para que sirvam de modelos positivos para os filhos. “Os pais têm que dar aos filhos, além da conversa, o exemplo. Se os pais ficam grudados nos aparelhos, os filhos vão seguir o mesmo caminho. Em vez disso, é bom procurar lugares que em que os filhos façam atividades, cursos, passeios ao ar livre etc.”, finaliza.

Imagem: Creative Commons CC0
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E é da China, país onde a dependência tecnológica já é reconhecida como problema de saúde pública, que vem o vídeo com um conselho para todos os pais:

Limites

“O limite quanto ao uso da tecnologia deve ser estabelecido pelos pais desde sempre”
Carla Cavalheiro Moura – psicóloga

Se na infância o excesso de tecnologia pode afetar negativamente o desenvolvimento físico e cognitivo da criança, na adolescência os problemas só tendem a aumentar. Ansiedade generalizada, depressão, fobia social e dificuldade de concentração são alguns dos sintomas geralmente associados ao uso abusivo de tecnologia em adultos e adolescentes. É o que afirma a psicóloga Carla, que também é integrante da equipe do Programa de Dependências Tecnológicas do Ambulatório Integrado do Controle dos Impulsos – PRO-AMITI, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

E os problemas podem não parar por aí. Recentemente, uma onda de suicídios cometidos por jovens depois de participarem de jogos pela internet espantou o mundo e deixou em estado de alerta muitos os pais.

Imagem: Creative Commons CC0
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Para Carla Moura, no caso dos adolescentes, o que acontece é que os pais acham que, por estarem no quarto com seus aparelhos eletrônicos, os filhos estão protegidos. Ainda segundo a psicóloga, o que acontece é um isolamento desses filhos dentro de casa. “Eles pegam o seu aparelho eletrônico, e isso acontece em qualquer classe social, e vão ficar ali inseridos só naquele mundo. Eu digo para os pais que às vezes o filho está muito mais exposto quando está no quarto sozinho sem nenhum tipo de cerceamento ou monitoria dos pais. É papel dos pais estar junto”, enfatiza.

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Nos EUA, especialistas já compararam o uso excessivo de eletrônicos na infância e na adolescência com a dependência de drogas. O que pode até parecer exagero num primeiro momento, soa ainda mais perigoso se pensarmos na tecnologia como uma “droga” que não pode ser evitada. “No caso da tecnologia não é possível dizer para que a pessoa não use mais a internet. É preciso todo um trabalho de construir um sistema de autorregulação, coisa que não foi feita”, explica a profissional.

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Além dos problemas comportamentais, o uso excessivo de tecnologia pode também, a longo prazo, causar danos físicos como tumores cerebrais. O risco, neste caso, é a exposição às microondas emitias por aparelhos celulares. Quem afirma é a socióloga americana e doutora em saúde pública Devra Devis. Autora do livro Desconectado, em que apresenta pesquisas que buscam comprovar os riscos, a Dra. Devis alerta para o fato de que o perigo é maior no caso das crianças, cujo cérebro encontra-se ainda em formação.

Segundo Carla Moura, não existe outra solução para evitar os excessos que não seja estabelecer limites e fazer a regulação do uso da tecnologia pelos filhos. “É preciso que os pais monitorem sempre o que o filho está fazendo, que estejam sempre junto nos momentos em que o filho esteja vendo ou jogando alguma coisa. É preciso primeiro ouvir e ver o que o filho está fazendo e não chegar já criticando. Muitas vezes os pais não sabem nem ao menos como é o jogo que o filho joga”, orienta.

Além dos pais, a atuação dos educadores também pode ser importante neste contexto. É o que afirma a professora e Gerente de Serviço do Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) Seara Bendita, no Subdistrito Cidade Ademar, em São Paulo (SP), Elisângela Maria da Silva Paes. Para ela, o papel do educador é orientar e construir estratégias socioeducativas para que crianças e adolescentes aproveitem todos os recursos disponíveis nesse universo virtual de maneira consciente. “O educador deve ser um mediador entre o velho e o novo, possibilitando discussões sobre os benefícios e perigos do uso da tecnologia no dia a dia”, diz.

Imagem: Creative Commons CC0
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A discussão sobre o uso da internet está presente também em nossos projetos, como é o caso do Criança é Vida Educação Sexual, voltado para crianças de 7 a 12 anos e adolescentes de 13 a 15, e que alerta sobre os riscos de abuso e exploração sexual e da exposição exagerada nas redes sociais.

Para Vana, do CAPS Nosso Lar, “a sugestão é que, ao dar acesso à internet aos seus filhos, os pais fiquem vigilantes com os conteúdos acessados, para depois não terem que consertar os estragos feitos na vida deles”.

Apoio

Em São Paulo, pais e mães que precisam de ajuda para lidar com o problema dentro de casa podem contar com o serviço oferecido pelo Programa de Dependências Tecnológicas do Ambulatório Integrado do Controle dos Impulsos – PRO-AMITI, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Quem conta como funciona o PRO-AMITI é a psicóloga, terapeuta de família e coordenadora do Grupo de Familiares do Programa, Dra. Sylvia van Enck Meira.

Em 2007, quando foi criado, o PRO-AMITI atendia pacientes adultos e adolescentes, além de seus familiares. Atualmente, os adolescentes não estão entre os pacientes, mas seus familiares podem receber ajuda. “Temos um grupo aberto que atende também a pais, mães e familiares de pessoas que não estejam inscritas como pacientes do Ambulatório, o que inclui os adolescentes”, explica a coordenadora. Um projeto em andamento pretende que o serviço volte a atender também a esse público.

Entre a população em tratamento, são os homens dos 18 aos 34 anos aqueles que mais buscam os jogos online, fonte da maior parte das dependências atendidas no Programa. No que diz respeito à classe social, a experiência da Dra. Sylvia Meira no PRO-AMITI mostra que a crença de que nas classes mais abastadas e com mais recursos para aquisição de eletrônicos o problema seria maior não se confirma. “O que nós temos visto é que na classe média e média baixa, em que os pais fazem de tudo para poder oferecer o melhor para o filho, o problema está bastante disseminado”, revela a psicóloga.

É o que percebe também a gerente Elisângela Paes no CCA Seara Bendita. O CCA desenvolve atividades socioeducativas para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos em situação de vulnerabilidade e risco. “Quando faço atividades com famílias, percebo que praticamente todos têm acesso à tecnologia e, em sua maioria, acessam a internet através de celulares. Muitas vezes permitem que suas crianças e adolescentes utilizem de forma exagerada a tecnologia sem controle e sem dimensão de como educar seus filhos”, conta.

A psicóloga do PRO-AMITI explica que o objetivo dos encontros com familiares é ajuda-los a compreender o que está levando o seu parente a se refugiar na internet. Isso é feito escutando suas queixas e dificuldades. “Os pais normalmente se sentem impotentes para auxiliar os filhos”, diz.

Imagem: Creative Commons CC0
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Entre os adolescentes dependentes de jogos online cujos pais são atendidos no PRO-AMITI, a maioria é composta por filhos únicos, filhos de pais separados ou de mães solteiras. “A mãe sai para trabalhar e não tem como monitorar o seu filho, que acaba ficando muito só para cuidar de tudo”, conta a terapeuta de família.

Segundo a especialista, os pais, em geral, demoram muito a buscar ajuda, quando a situação já fugiu do controle, incluindo até tentativas de suicídio. A recomendação que ela faz aos pais é que redobrem a atenção e não tenham medo de impor limites, mesmo diante da reação muitas vezes violenta dos filhos. Para ela, ao optar por não interromper os filhos enquanto jogam, os pais acabam se tornando “cúmplices” da situação, o que representa um risco muito grande. “Procurem conversar, dialogar e também estabelecer limites enquanto dá”, conclui.

Mensalmente os profissionais do PRO-AMITI se revezam para oferecer palestras abertas ao público. Para participar do grupo de familiares ou conhecer a agenda de eventos, basta ligar para (11) 2661-7805. O site do Programa também descreve uma série de comportamentos que podem indicar a dependência. Um alerta que serve para todos nós.

Imagem: Instituto Criança é Vida
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